Curso de Formação em Facilitador de Grupo de Movimento
6 de janeiro de 2023A entrega ao corpo e à vida
3 de maio de 2023Título: A Inveja do Útero: Uma Perspectiva Bioenergética
Autor: Scott Baum, Ph.D.
Copyright Scott Baum, Ph.D. 2022. Este artigo foi aceito para publicação na revista “Bioenergetics”. Será publicado online e impresso em 2023.
Endereço para contato com o autor: 160 West 73rd Street (1D), NY NY, 10024, USA.
E-mail: docsbpsych@aol.com.
Introdução
O conceito que abrange a inveja do útero remonta-se à teoria psicanalítica, quase tão distante quanto a posição inicial de Freud a respeito da inveja do pênis. A teoria criada por Freud, a partir de suas observações sobre a inveja das mulheres pelo falo dos homens, e tudo o que ela simboliza, enfrenta diversas críticas. Foram propostas e elaboradas formas alternativas de entender a realidade psicológica e emocional observada por Freud (Bayne 2011; Kittay, 1984; Mitchell, 1974). Concomitantemente, a onipresente inveja dos homens pelo útero, símbolo da capacidade intrínseca das mulheres de gerar e nutrir, é observada, enfatizando-se seu significado. No entanto, esse determinante significativo da formação da personalidade, e dos fenômenos sociais, permanece à sombra do tema mais proeminente da potência fálica dos homens e da inveja das mulheres, pelo menos no que tange a literatura psicanalítica.
Esse artigo propõe-se a ampliar a compreensão da inveja do útero, como estrutura para investigar a constituição básica da personalidade, sob a perspectiva da teoria e prática da análise bioenergética. Essa perspectiva oferece novas dimensões para a experiência e compreensão da inveja fundamental presente na esfera interpessoal das relações entre homens e mulheres. A questão será investigada em termos da existência e dos efeitos, aparentemente erradicáveis, a partir dessa inveja, assim como, suas consequências nas relações humanas e o futuro da espécie.
Existem importantes questões filosóficas subjacentes à questão da inveja dos homens com relação à capacidade de procriação e nutrição das mulheres. Tais questões serão referidas no decorrer deste artigo, mas não serão exploradas em detalhes. Não tentarei expor todas as visões conflitantes sobre esses pontos filosóficos e, nem ao menos, defender uma posição em detrimento da outra. Porém, onde houver potencial para suscitar diferença clínica, vou me empenhar para elucidar o significado dessa diferença, através da visão filosófica dos psicoterapeutas, sobre a maneira como abordamos as manifestações da dinâmica relacionada à inveja das mulheres pelos homens. Uma vez que, estamos todos sujeitos a forças intrínsecas sobre tudo o que consideramos ser da “natureza humana”, e a forças extrínsecas de socialização e doutrinação, além das interseções dessas forças – em identificações, reações de transferência, convicções e preconceitos -, é extremamente importante estarmos atentos à influência dessas forças sobre nós, como clínicos.
Evidentemente, essa é, sobretudo, uma tarefa árdua a ser realizada, quando nós mesmos, terapeutas, estamos sujeitos à poderosa influência que tais forças intrínsecas e extrínsecas exercem sobre nós. O nosso modo de pensar sobre essas forças, consequentemente, torna-se central para a construção da nossa persona terapeuta. Assim como na psicoterapia, onde um dos principais objetivos da experiência é a expansão de consciência sobre o próprio ser, o processo que permeia pensar e enfrentar os próprios preconceitos, sobre o tópico da inveja dos homens pelas mulheres, requer disposição para enfrentar e considerar elementos de si mesmo, que talvez não correspondam à maneira como gostaríamos de ser. Como defenderei aqui que a inveja é irredutível, esse encontro pode tornar-se muito complexo.
O Temor De Um Conceito
Trinta e cinco anos atrás, quando apresentei pela primeira vez os conceitos sobre os quais descreverei aqui, estimulei uma reação no grupo ao qual eu apresentava essas ideias, que me calou até agora. Embora a reação tenha sido expressa mais veementemente por uma única pessoa, eu tinha certeza de que representava um sentimento coletivo. Meus conceitos sobre essa dimensão do fenômeno da inveja do útero — apenas uma dimensão — foram extraídas a partir das minhas próprias experiências, como homem, pai e psicoterapeuta de muitos pacientes masculinos. Mesmo que minhas conclusões a respeito dessas verificações estejam apenas parcialmente corretas, elas fornecem uma visão sobre a fragilidade da psique e do ser emocional masculino. E, caso sejam verdadeiras, afetam todos nós na nossa frágil condição humana, pois os homens comandam o mundo.
De fato, a ideia de que os homens carregam dentro de sua personalidade uma inveja básica das capacidades procriativas, generativas e nutridoras das mulheres não é nova. Essa opinião integrou parte da teoria psicanalítica básica, pelo menos inicialmente, proposta por Karen Horney (ver Bayne, 1984). Os estudiosos ainda divergem se Karen Horney ou Melanie Klein propôs a ideia inicialmente. Contudo, não há dúvida de que tal ponto de vista custou a expulsão de Horney dos círculos psicanalíticos ortodoxos.
O mecanismo de defesa compensatório é a força por trás na ideia inicial da inveja do útero e na inveja do pênis. Como Freud mesmo formulou, o conhecimento de que alguém possui um dom inferior ao do outro causa uma lesão narcísica, a qual deve ser compensada. Esta é especificamente uma lesão narcisista, pois perfura o senso de valor e mérito do indivíduo e, portanto, afeta a autoestima positiva. Arnold Becker (1973) expôs extensivamente como a experiência de insignificância neste universo faz com que o homem se esforce para conquistar algo, ou tornar-se alguém (naquela época ainda se partia da premissa, então predominante, de que a experiência dos homens era universal e a experiência das mulheres, secundária).
Joseph Berke (1997) elucidou, minuciosamente, a longa e dolorosa história de ódio e inveja maliciosa dirigida à mulher, devido à sua feminilidade essencial, incluindo a faculdade da gravidez, do parto e dos cuidados básicos na criação dos filhos. Uma leitura dessa história torna-se insuportável devido à sua representação gráfica das capacidades sexuais, reprodutivas e nutritivas da mulher, sendo difamadas, odiadas e destruídas através da implantação maliciosa de dispositivos psicológicos, tais como projeção, demonização e negação. A difamação também ocorre por meio de dispositivos sociais e políticos de dominação, condenação, expropriação, exploração e, em última análise, aniquilação. Julia Kristeva (2014) denominou isso um ataque à força materna, que cria, preserva e protege a vida. Conforme o meu conhecimento, a força materna não é portada exclusivamente pela mulher, porém, está intrinsecamente relacionada a uma parte das capacidades reprodutivas e nutritivas da mulher.
Avrum Weiss (2021), em sua recente descrição sobre a força nociva que os homens trazem aos nossos relacionamentos com as mulheres, salientou a manifestação clínica dessa nocividade. Aqui, novamente, a inveja proveniente da falta das capacidades generativas, é identificada como mecanismo causal para a estimulação de ódio e inveja malévola da mulher, constantemente presente ao nosso redor. Mesmo se aceitarmos o argumento de Berke, onde o que homens e mulheres sentem não é apenas inveja propriamente dita, mas também admiração e desejo pelo que o outro sexo possui, ainda nos resta a questão desconcertante da origem e durabilidade da inveja, além do ódio e da malícia que a acompanham, de forma evidente, no mundo do homem e da mulher.
Esse trabalho não intenciona provar que essas malignidades existem no mundo dos seres humanos. É a minha experiência no mundo, e no meu interior, que essas malignidades se fazem presentes. Embora eu possa correlacionar parte da minha própria malevolência à realidade do meu relacionamento com a minha mãe e, à influência sobre mim a partir do relacionamento do meu pai com as mulheres, há muito mais do que isso, tal como a inveja causada pela deficiência e pelo ciúme daquilo que um possui e o outro não.
Uma Perspectiva Adicional
Wilhelm Reich (1970, 1973) propôs uma perspectiva teórica, expandindo as ideias de Freud, sobre a centralidade da sexualidade no desenvolvimento e na vida da personalidade. Essa linhagem do pensamento psicanalítico gerou uma série de derivados teóricos, incluindo a análise bioenergética (Lowen, 1958) e os elementos da terapia Gestalt (Smith, 2011). Entre os diversos princípios propostos como centrais a essa perspectiva, sobre o desenvolvimento da personalidade e sua função, bem como possíveis métodos técnicos em psicoterapia, há um que considero particularmente relevante ao estudo das relações entre homens e mulheres e, ainda, aos sentimentos específicos de inveja, ódio, raiva e malevolência direcionados às mulheres pelos homens.
Reich expôs a existência da ansiedade do prazer, um estado decorrente do medo intrínseco de ingressar a um estado ilimitado, engendrado pela experiência somatopsíquica do orgasmo, quando integra a sensação oceânica, também descrita por Freud. Há diversas maneiras de entender esse fenômeno, mas, o relevante para essa tese será a existência de estados alterados de consciência e experiência, sentidos como elementos esmagadores do ego e isolamento psíquico. Durante a história da humanidade, tais estados foram temidos e almejados, induzidos por diversas práticas, incluindo provações que envolvam tremendo esforço, dor e, muitas vezes, ameaça de morte, ocasionalmente facilitadas pelo uso de substâncias psicoativas.
No caso da mulher e da gravidez seguida pelo parto, a experiência de ser movida, por forças além do controle volitivo, para dentro e através de um evento ameaçador, historicamente e com muita frequência resultando em morte, é inevitável. Isso significa que, para a mulher, a experiência ao render-se a forças que dissolvam fronteiras, ocasionando experiências incapazes de ser encerradas voluntariamente, impondo o encontro com a morte, faz parte de seu legado evolutivo. Isso requer uma elaboração mais aprofundada.
Mortalidade E Parto
Partindo do princípio de que um desafio central na existência humana é a consciência da nossa própria mortalidade. Viemos do nada e a ele voltaremos. A nossa morte é a realidade mais assustadora que nós, criaturas humanas, enfrentamos. Ao longo das gerações da nossa evolução, idealizamos muitas tentativas para solucionar o problema inerente ao terror avassalador induzido por esse fato (nossa mortalidade encontra-se dentro dos poucos fatos sobre os quais não há disputa entre a maioria das pessoas). Encontrar significado pessoal e coletivo nas nossas vidas foi proposto de modo a equilibrar o terror, a dor e solidão gerados pela realidade da mortalidade. Esse é um aspecto central da condição humana, e não introduzirei uma articulação completa das ofertas filosóficas e diferenças de opinião oriundas do estudo desta condição, ou sugestões de como viver plenamente diante dela. Mesmo que essa perspectiva estivesse dentro do meu alcance, esse não é o local mais propício.
Além da morte, a única experiência inevitavelmente avassaladora na vida humana é o parto. Uma vez que o processo de nascimento é iniciado, não existe outra saída, exceto através da conclusão do processo. A gestante não pode desistir, mudar de ideia, escolher outro horário. De uma forma ou de outra, a criança, tendo crescido em seu corpo, sairá do seu corpo. E o nascimento ocorrerá, mesmo nas melhores e mais apropriadas circunstâncias, em um momento em que os processos biológicos e fisiológicos ultrapassarão as capacidades voluntárias e volitivas da mãe. Não há outro caminho a não ser seguir em frente, através de um evento involuntário, abrangente e convulsivo, vencendo todo autocontrole diante de si, uma corrente impetuosa do movimento humano espontâneo.
O destino da mulher é, portanto, enfrentar a morte, iminente, fatal, previsivelmente, em vida, e para a maioria, inevitavelmente. Enfrentá-la em um momento, talvez extático, de agonia e engajamento organísmico. Nenhuma outra atividade humana, que eu consiga elaborar, detém esse imperativo inalteravelmente embutido na sua experiência. Os humanos são criaturas onívoras; a caça certamente faz parte do nosso legado evolutivo. A caça pode ser perigosa, pois alguns animais não se submetem antes do combate. Ainda assim, pode ser mais segura e, mais importante para a minha exposição atual, a caça pode ser interrompida. A qualquer momento existem opções para fuga, saída de campo, retirada e reinício da caça em um momento mais oportuno. A morte, em todos os cantos, segue na espreita, mas precauções podem ser adotadas, evitando-a, por um outro lado. Não existem opções, contudo, uma vez que o curso inevitável do parto é iniciado, iniciando-se pela gravidez e, então, uma realidade efetiva por quase um ano, precedendo o evento final.
Na verdade, duas questões devem ser analisadas. A primeira é a realidade ao enfrentar um gênero de experiência avassaladora na vida, levando-nos, fatal e inevitavelmente, a um encontro com forças superiores a nós mesmos, incluindo a morte. A segunda é o significado e efeito, onde metade da população atinge a experiência de trazer outro ser humano dentro de seus corpos e, a outra metade, não. Há similaridades entre ambos os fenômenos, onde há uma experiência que molda a psique e a personalidade, não podendo ser compartilhada igualmente entre os sexos e, consequentemente, influencia e afeta as relações entre os membros desses dois grupos – independentemente das questões de identidade de gênero relacionadas – de formas nas quais devemos estar atentos e examinar.
Embora seja verdadeiro que no mundo moderno as mulheres podem recusar a capacidade de gerar e criar os filhos, isso nem sempre foi realidade na maior parte da história humana. Sem filhos, os grupos sociais não teriam continuidade, ou seja, as pessoas não poderiam sobreviver. Talvez uma visão mais ampla do imperativo convincente para a sobrevivência da espécie seja a maneira correta de entender a força central que impulsiona a evolução – a preservação e a continuação da nossa espécie, basicamente nos conduzindo à ação. Essa é a teoria darwiniana da evolução, detentora de alto grau explicativo e, a qual, destacou-se ao longo do tempo. Mas, de maneira mais prática, sem filhos, nenhum de nós sobreviveria, pois nos tornamos muito frágeis e enfraquecidos, pela idade ou enfermidade, para cuidar de nós mesmos. A maioria das, ou quase todas, mulheres tiveram que se alistar na causa da sobrevivência do grupo, concebendo filhos. Até muito recentemente, e ainda mesmo nos tempos atuais, de forma significativa, essa era também uma atividade altamente periculosa à vida da mãe.
O desafio de encarar a importância de ambas as questões relacionadas – talvez a ponto de ignorar a mais óbvia e incómoda das verdades – tornou-se evidente para mim a partir da minha própria experiência, durante uma conferência dos membros do Instituto Internacional de Bioenergética, há vinte e cinco ou trinta anos atrás. Naquela conferência, uma colega e amiga, Barbara Middleton, terapeuta bioenergética, assistente social e uma das primeiras doulas americanas que já conheci, realizou uma palestra. A apresentação contrastou dois filmes, um sobre um parto convencional, realizado em um hospital da Marinha dos Estados Unidos e, outro, sobre um parto domiciliar, utilizando os métodos desenvolvidos por Frederick Leboyer, um obstetra francês, com base na filosofia tradicional da obstetrícia. O contraste era tão forte, a ponto de ser arrebatador. Inevitavelmente, a impressão deixada pelos filmes, assim como a sua palestra, foi o efeito indelével do processo, tanto na mãe quanto na criança, independentemente da forma conduzida. Juntamente com minha falecida esposa, Elaine, éramos os únicos participantes da conferência assistindo à apresentação, o que, na época, me surpreendeu e causou desânimo. Atualmente, compreendo que foi uma manifestação dos sentimentos conflituosos suscitados pelas questões da mulher e do parto, alguns dos quais estão relacionados aos conceitos aqui apresentadas.
Rendendo-Se À Vida
Muitas disciplinas da vida — incluindo o conjunto de crenças que fundamentam a teoria da análise bioenergética — incentivam, aconselham e exortam cada um de nós a se render às forças vitais. Obviamente, tal rendição não pode ser realizada sem o reconhecimento da mortalidade. Se essa rendição for fundamentada, consequentemente, deve incluir um encontro com as forças destrutivas que estimulam o comportamento humano. A articulação de uma explicação filosófica e científica para a manifestação de forças destrutivas, presentes em nós, é um imperativo reconhecido por todo sistema espiritual e filosófico proponente de um modo de viver.
Uma razão por trás do ímpeto para contemplar a rendição à força da vida, como parte eficaz de uma vida bem-sucedida, é que ela coloca a pessoa em contato com a força da bondade e benevolência, existente lado a lado com a força destrutiva. A presunção subjacente a esse impulso é que a experiência de benevolência – amor, simpatia, compaixão, bondade -, ativada em relação aos outros por meio da empatia, contra-ataca, neutraliza e, até elimina, as forças de negatividade, tais como ódio, ciúme, sadismo e raiva. Alguns acreditam que isso acontece intrinsecamente, uma visão utópica sugerindo que, uma vez que as pessoas sejam expostas à benevolência disponível, elas a acompanharão. Outros acreditam que seja necessário o cultivo de uma atitude benevolente diante do surto persistente de negatividade, dentro de si mesmo e nos outros.
Um exemplo disso é apresentado em uma tese não publicada sobre o ensino do bem nas escolas públicas (Baum-Tuccillo, 2009). Na leitura dessa análise, há uma exortação à ética do cuidado em substituição à ética da forma e do perfeccionismo. Nesse estudo, sou alertado por minha própria veemente luta a adotar esse modo de vida, tão profundamente quanto, necessário para incorporar a visão do autor. Sem dúvida, uma parcela remete-se exclusivamente à minha própria realidade e luta pessoal. Igualmente indubitável, outra parcela é uma função dos elementos intrapsíquicos e socializados profundamente enraizados em mim, emergentes das tensões da inveja maliciosa e patológica.
Como observado acima, existem análises profundas, pungentes e perscrutadoras da inveja do útero, que permeia as relações humanas. Mas, nenhuma, dentro da medida do meu conhecimento, aborda essa questão, a qual considero fundamental, das reações e dos sentimentos ativados nos homens no encontro com essa diferença básica com as mulheres, existente nas experiências da gravidez e do parto. De acordo com a minha experiência, esse encontro engendra um sentimento básico de inferioridade nos homens. Esse sentimento demanda e potencializa reações que moldam as personalidades dos homens e, portanto, afetam a todos nós.
Abundam teorias sobre o que impulsiona as pessoas e molda o desenvolvimento das nossas personalidades. Uma vertente do pensamento psicanalítico, presente desde o início da elaboração dessa teoria, é a de que somos motivados centralmente pela necessidade do sentimento de importância, contando com posição e substância. O imperativo para ser uma pessoa significativa, de importância, pode se juntar, ou mesmo fundir-se com o forte impulso para dominar o outro, quando demandados por sentimentos de inferioridade. É um fator básico da natureza humana contrariar os sentimentos de inferioridade, dominando-os ou aqueles aos quais nos sentimos inferiores? Aparentemente sim, na minha percepção. Dominar e destruí-los ou aqueles que constantemente destacam a nossa própria inferioridade, parecem fazer parte da condição humana. Qualquer ação, que alivie os sentimentos de inferioridade e restaure uma posição equivalente, parece ser aceitável dentro dessa causa.
Render-se à vida conforme ela é vivida, portanto, é render-se à mortalidade, às forças da vida e da morte que estão além do controle de qualquer pessoa. Entre elas configura-se o inevitável desafio da gravidez e do parto. E o inevitável desafio dos sentimentos de inferioridade evocados pela realidade de que os homens não precisam enfrentar tal adversidade. Diante disso, criamos esse desafio, extraordinariamente, gerando conflitos com os outros – guerra -, provocando uma condição na qual o encontro com a morte é inevitável e fora do nosso controle? A opção entre fuga ou desistência desse desafio dissolve-se, tanto nas realidades práticas, nos momentos de conflitos avassaladores, quanto na doutrinação dos homens, onde a desistência intensifica o sentimento de inferioridade – mediante a acusação de covardia – tornando-se até mesmo insuportável.
Se não houver rendição a essa força vital, dominá-la torna-se um impulso. O impulso dentro dos homens para dominar essa força, denominada força materna por Kristeva, possui muitos determinantes. A força materna não é exercida ou aplicada exclusivamente pela mulher. É a força que protege e nutre a vida. Uma manifestação de desespero dos homens para ser alguém, para não ser “um perdedor”, conforme Donald Trump costuma dizer, manifesta-se na inveja maliciosa das mulheres. Estou adicionando aqui um determinante para essa inveja e, consequentemente, sua vicissitude na inveja maliciosa, distorcida e assassina.
Minha intenção, nesse artigo, é adicionar um determinante que emerge dos sentimentos induzidos pelo reconhecimento da necessidade que as mulheres enfrentam ao deparar-se com experiências avassaladoras e, até mesmo, a morte como parte de seu destino biológico. Esse determinante não foi reconhecido e, portanto, não discutido, e ainda é fundamental para a construção do ser e da realidade interna, além da realidade que nos circunda. Nós, psicoterapeutas psicodinamicamente orientados, trabalhamos na linha de frente com a luta diária das pessoas, os fatos da condição humana e a experiência de vida pessoal de cada um, o sofrimento individualmente único, conjuntamente com cada um de nossos esforços para dominar o sofrimento e a possibilidade, de forma autêntica e significativa. Pretendo oferecer uma compreensão da dimensão que constitui a dificuldade ao encarar a condição humana e, mesmo, a resistência para enfrentá-la, originada na realidade cotidiana do trabalho sobre nós próprios e com os outros.
Anexo
Nos últimos cinquenta anos, temos focado, como campo de atuação, em questões sobre os elementos básicos da relação entre as pessoas. Na gravidez e no parto, existe o apego entre duas pessoas ao nível mais básico. Um está literalmente dentro do outro, e os dois iniciam o processo de compartilhamento de sangue e tecido, enquanto a criança torna-se lentamente um ser separado e delimitado, em seu próprio ambiente, dentro do âmbito corporal da mãe. A partir da leitura de um artigo da colega de Israel (Harel, 2002), utilizando uma perspectiva pré-natal para lançar luz sobre um processo psicoterapêutico, inesperadamente percebi como é óbvio, mas negligenciado, o fato desse apego precoce. Semelhante ao próprio título do livro de Avrum Weiss sobre os medos dos homens em relação às mulheres: Oculto à visão de todos: como os medos dos homens em relação às mulheres moldam seus relacionamentos íntimos (2021), a criança dentro do apego materno e seu significado para o futuro apego e dependência estavam ocultos à visão de todos.
Atualmente, existe uma quantidade considerável de pesquisas, teorizações, compartilhamento de materiais clínicos e experiências sobre o tema relacionado ao apego e aos processos de relacionamento. As inconstâncias do apego, ao qual eu acrescentaria, dependência, estão no centro do discurso sobre o que transparece durante a psicoterapia dinâmica. Sob a influência da teoria feminista, uma compreensão da necessidade de formar um relacionamento mútuo e igualitário tornou-se parte do conjunto dos princípios básicos que sustentam a formação do ambiente psicoterapêutico. Essa filosofia sobre relacionamento de tratamento postula que todos os membros do relacionamento possuem igual valor. Mas o homem enfrenta um desafio significativo ao afirmar seu valor e importância diante dos fatos da gravidez e do parto.
Uma Perspectiva Bioenergética
Antes de ingressar na exploração do significado desses fatos sobre a diferença entre o homem e a mulher com relação à gravidez, ao parto e à nutrição, teremos um breve esclarecimento sobre a perspectiva utilizada aqui para examinar o assunto. A perspectiva bioenergética oferece um método valioso para examinar essa dimensão do homem, assim como nossas reações à realidade da diferença em virtude da gravidez e do parto, focando na ansiedade estimulada diante de experiências avassaladoras, incluindo o prazer. A percepção de Wilhelm Reich, de que mesmo o encontro com o prazer implica uma profunda ansiedade, será muito útil aqui. É o momento em que somos arrebatados pela experiência, superados, subjugados, quando nossas defesas tornam-se insuficientes para conter a maré da experiência. Mesmo sendo arrastados para o êxtase, a perda da autoconsciência nos aproxima da realidade de nossa própria mortalidade. Ainda no encontro com a benevolência, a pura consciência da nossa própria condição de criatura trará consigo admiração e medo. Novamente, pretendo me abster de uma discussão mais ampla sobre o significado da imersão em uma experiência avassaladora, a perda da autoconsciência e suas possibilidades, para focar em uma realidade mais mundana e seu significado para a compreensão de nós mesmos e uns dos outros.
O que acontece com o homem que observa, presencia e testemunha esse processo de dar à luz uma criança? E quais são as ramificações, em termos de desenvolvimento psíquico, identidade social e gênero, relacionadas ao fato inevitável e incontestável de que só a mulher é capaz de desfrutar dessa experiência, e, de fato, obrigada a tal, para o bem de todos nós?
A agressividade humana, em termos bioenergéticos – força, afirmação e, frequentemente, acompanhada por violência, também faz parte da nossa constituição. Assim como outros primatas, somos igualmente capazes de expressar ganância, interesse próprio ou do grupo. Em nosso ambiente de adaptabilidade evolutiva, provavelmente organizado em pequenos grupos, não está claro o quão determinante é essa agressão. No entanto, seja qual for o ímpeto instintivo da agressão, culminando em violência, somos capazes de modular essas forças em nós. Podemos aplicar características nas relações com os outros: empatia, ao sentir o que outra pessoa sente; simpatia e compaixão, ao sentir por alguém e nos preocupar com o seu bem-estar. Entender por que não utilizamos essas capacidades para controlar a destrutividade e violência é a nossa maior prioridade para sobreviver como espécie e em sociedade, diariamente.
Em famílias saudáveis, representadas por uma minoria, valor e significado podem ser conferidos por meio das relações entre os membros da família. A fé e a apreensão da benevolência, e talvez forças místicas benevolentes, podem oferecer o mesmo. Mas a violência diária e a exploração de um ser humano por outro nos diz que outras forças destrutivas estão em ação, devem estar em ação, para que o mundo pareça da maneira que é. Nenhuma força destrutiva pode ser ignorada e, consequentemente, esse é o estudo de uma dessas forças.
Participei do nascimento dos meus dois filhos. Compareci a todas as consultas obstétricas (exceto uma) com minha esposa, durante os dois processos de gravidez. Acompanhei minha esposa durante o trabalho de parto e, na sala de cirurgia pela primeira vez, o nascimento do meu filho por cesariana; e mais uma vez, na sala de parto durante o nascimento da minha filha, no parto vaginal após cesariana, após quase três anos. A partir da perspectiva bioenergética de rendição a forças biológicas, psíquicas, emocionais, e talvez espirituais fenomenais, não há experiência comparável à vivida pela mãe nesses eventos. Isso ocorre porque a força e o impulso desses processos encontram-se completamente além da autoridade volitiva. Talvez essa experiência se repita no momento da morte, não sei, entretanto, na vida não há nada similar.
Uma Inferioridade Básica
O filme, baseado na história O Horizonte Perdido, retratada uma sociedade utópica e igualitária. Isolada do mundo, no vale escondido de Shangri-La, encontra-se uma sociedade tranquila envolta em paz e felicidade. Todos compartilham igualmente o trabalho e os recursos. Quando um forasteiro perdido pergunta ao ancião o que acontece quando um homem cobiça a parceira de outro homem – a única questão que eventualmente poderia ocasionar conflito na comunidade – o ancião responde que, evidentemente, o homem compartilha sua parceira com outro homem. A dinâmica subjacente de propriedade, domínio e posse é inconfundível — mesmo no paraíso.
Grande parte das pesquisas e teorias etológicas, ao longo do último século, foi dedicada aos padrões de reprodução entre os mamíferos, incluindo os humanos. Questões sobre cortejo e padrões de competição pelo privilégio de acasalamento levaram a teorias sobre a importância para os machos, incluindo os humanos, de rastrear a dotação genética da prole. A hipótese é que existe a necessidade de garantir que a progênie nascida da fêmea seja realmente a prole do macho. É óbvio dizer que os genes da criança humana provêm dos genes da mãe, contudo, não tão facilmente verificado com relação ao pai. Alguns teorizam que o impulso observado nos homens, pela posse das mulheres em suas vidas, deriva desse interesse em saber se o filho nascido de uma mulher com quem copularam é na verdade seu filho.
Do ponto de vista darwiniano, isso pode refletir o impulso do homem para garantir a reprodução de seu material genético, no entanto, não está claro que isso reflita um desejo de reproduzir a espécie. Talvez esteja mais próximo de uma necessidade narcísica de se reproduzir, de exibir sua dotação genética. Essa visão do impulso evolutivo nos aproxima de um conjunto de ideias detalhadas por Arnold Becker, como exemplo. Suas teses, baseadas em ideias psicanalíticas e filosóficas, propõem que o que nos move é a necessidade de ser alguém, ter relevância, conseguir realizar algo a partir de nós mesmos diante da terrível realidade da mortalidade, e a ausência de qualquer certeza sobre o nosso sentido e significado no universo. Portanto, mais do que a sexualidade e seu suposto objetivo final de perpetuação da espécie, esse é o principal condutor do comportamento humano.
Se a mulher carrega o fardo mortal do parto, então de que maneira o homem torna-se importante? A contribuição necessária do material genético para preservar a diversidade genética é fundamental, evidentemente. Mas qual é a relevância, para fins evolutivos, de quem provêm esse material? A propósito — se você acha que essa questão é uma preocupação antiquada —, ganhei recentemente um neto que não tem nada do meu material genético. Embora eu não me sinta, felizmente, perturbado por essa condição, isso não significa que eu não tenha pensado a respeito. E isso não significa que eu não saiba que, em algum lugar nos meus preconceitos não reconhecidos, permanece uma atitude com a qual terei que lidar com o passar do tempo. E, certamente, a experiência clínica e os dados de pesquisas sobre a complexidade do autodesenvolvimento e das relações objetais dos adotados sublinham a importância dessas questões.
O impulso para fazer diferença, ter significado e importância, onde todas as funções narcísicas são cruciais à dignidade e autoestima positivas, está relacionado a esse senso básico de inferioridade. Uma objeção frequente a essa linha de investigação sobre a natureza masculina é a de que as mulheres também são possessivas, dominadoras etc. Mas, como sou alguém dos anos sessenta, considero seriamente a exortação de que devemos estudar os nossos próprios preconceitos e as nossas tendências destrutivas, antes de nos pronunciar sobre os de outras pessoas. Nós, brancos privilegiados, cidadãos do primeiro-mundo e homens, deveríamos estudar nós mesmos, antes de embarcar em uma extensa teorização e intervenção sobre a vida dos outros.
Por fim, todas essas implicações na prática da psicoterapia dinâmica e da análise bioenergética são inúmeras e profundas. Quanto a respeito de nós mesmos devemos conhecer, antes de nos unir aos outros, para ingressar em um projeto para conhecer a respeito deles mesmos? Nessa questão sobre as relações entre homens e mulheres, influenciadas pela diferença devido à gravidez e ao parto, os riscos de elementos de contratransferência inexplorados são altos e, demasiadamente relevantes para serem observados e respondidos.
Nesse espírito, vamos considerar a possibilidade de que as formulações de Freud e de outros sobre as mulheres possam ser relevantes também para os homens. Essa formulação considera que há um sentimento básico de deficiência quando as meninas se comparam aos meninos. A deficiência decorre do sentimento de ausência, da falta do aparelho do falo e de tudo o que ele representa psiquicamente, socialmente e politicamente. Em uma visão feminista da teoria psicanalítica, podemos analisar a percepção de uma garotinha sobre o diferencial de poder no mundo ao seu redor. No ambiente de adaptação evolutiva dos seres humanos, as crianças teriam sido expostas à provação e às alegrias do parto muito precocemente na vida. Assim, a exposição dos meninos a essa diferença básica na biologia e o desafio da sobrevivência entre nós, homens, meninas e mulheres, tornou-se evidente.
A vida nos desafia infinitamente através da derrota. Descrevemos o atual confronto com um vírus mortal como uma guerra. A derrota é um dos desafios mais difíceis da experiência humana. Sustentar, enfrentar e, se possível, recuperar-se da derrota está entre as necessidades mais complexas e assustadoras da vida. Como os homens procedem, quando partimos dessa posição básica, onde as demandas pela sobrevivência da espécie não exigem o mesmo nível de coragem e auto sacrifício inevitavelmente exigido das mulheres? Em um esforço para administrar a deflação e inferioridade, criamos dominação e confronto mortal. A fragilidade do ego – o fato de não ter importância – torna-se combustível para nossa fragilidade. Nós, homens, sucumbimos às compensações para afirmar superioridade e utilizar força para nos livrar da fragilidade básica, com a qual todos lidamos.
Uma Aplicação No Campo Da Psicoterapia
Há muitos anos, Stanley Keleman referiu-se à elevação do cérebro humano a uma posição de destaque na explicação da condição humana, como um processo cefalofálico, onde elevamos o cérebro, na verdade o neocórtex, a uma posição suprema. O cérebro, integrante de um sistema muito complexo, uma matriz, na verdade, de estruturas de processamento de informações, passa a ser associado ao domínio do homem, aparentemente, devido à nossa biologia. Nós, homens, somos incitados a resolver os nossos sentimentos básicos de inferioridade – compostos por uma ideologia de socialização, onde a humilhação torna-se o seu instrutor mais poderoso – fazendo com que o mundo pareça estar de acordo com nossas grandiosas fantasias compensatórias de nós mesmos.
No meu ponto de vista, essa é uma recapitulação da hierarquia patriarcal, benéfica aos homens em nossa luta básica contra a inferioridade. Como psicoterapeutas profissionais, curadores do narcisismo devastado, podemos sucumbir à atração da potência fundada na visão da função humana explicável por essa ilusão hierárquica. Utilizando um modelo semelhante, para compensar a humilhação sentida pela insignificância, os homens elevam o sistema nervoso central a uma posição de superioridade. Portanto, nos elevamos acima da fragilidade básica que experimentamos em nosso trabalho, como curadores, ao acreditar que podemos manipular o sistema e, assim, alterar a vida. Esse é um intoxicante muito arriscado.
No cerne dos princípios da teoria da análise bioenergética está a convicção de que a render-se à vida do corpo, ao poder elementar do prazer, à dissolução dos limites e ao contato com a benevolência que o acompanham, conduzem a uma experiência básica de significado. Acredita-se que esse significado seja suficiente para compensar o inevitável sofrimento da existência humana. Como essa rendição pode ocorrer sem o reconhecimento da realidade da diferença entre homens e mulheres, e a inevitável fragilidade dos egos dos homens, que esse reconhecimento implica?
As defesas utilizadas pelos homens, preparando-nos para resistir a um encontro com os sentimentos provocados pela entrega à realidade das forças e experiências vitais necessárias para a sobrevivência da espécie são perigosas para nossa sobrevivência. A pressão para dominar, reivindicar oposição a qualquer subjugação, resistir e evitar humilhação a qualquer custo, nos direciona à própria extinção, não menos do que o impulso impetuoso para satisfazer a fome e o apetite nos leva ao consumo global de combustíveis e às suas atividades resultantes, aquecendo-nos a ponto de ameaçar a nossa sobrevivência.
Referências
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