Autora: Ana Lúcia Faria
Introdução
Falar da Entrega me faz voltar ao passado, à primeira infância, recordando os momentos em que me entregava com alegria e muita vivacidade aos momentos de dança com meus pais e minhas irmãs ao som de Cole Porter, N. King C, músicas clássicas, melodias inesquecíveis.
A brincadeira consistia em colocar meus pés sobre os de papai, enquanto este ensinava os primeiros passos de dança, seguindo os ritmos de cada melodia. Ao relembrar esses momentos, sou percorrida por sensações alegres e vitais de entrega à dança, aos encontros, ao movimento leve e criativo do meu corpo.
Passada a infância, a equação “entrega – alegria – dança” foi sendo substituída por “medo da entrega”. Várias mudanças, muita insegurança e situações difíceis relativas ao desenvolvimento, família e enfrentamento da vida foram tomando espaço e me afastando da dança.
Hoje, fazendo a retrospectiva dos meus mais de quarenta anos de vida profissional, sei que minha busca tem sido e continuará sendo em direção ao resgate e sustentação da equação “entrega – alegria – dança” não somente para mim, mas também para todos que me buscam enquanto profissional.
A Análise Bioenergética entrou em minha vida em 1986 quando, ao conhecer Eliana Izola (professora CBT na época da Sociedade brasileira de Análise Bioenergética) no Instituto Sedes Sapientiae, me senti sendo tomada por uma alegria, energia e entrega que eram transmitidas pelo que era dito e pela forma como era mostrado.
Naquele momento refleti que estava em busca disso, do resgate das minhas sensações e da possibilidade de entrega à vida. Entendi que para tanto deveria primeiramente resgatar essas possibilidades e me sentir confortável comigo mesma nesse meu processo se quisesse que essa conquista se refletisse no meu fazer e no meu viver a vida.
Outro momento que veio a me confirmar que o caminho era aquele mesmo foi quando estive pela segunda vez com Lowen. O trabalho proposto foi sobre “eu tenho direito” e poder me entregar a esse momento causou um grande impacto positivo em minha vida. Não posso deixar de falar da presença, entrega, e força do nosso grande mestre, Lowen.
Hoje, posso afirmar com certeza que o resgate da minha energia, da minha potência, a coragem de me enfrentar, de me entregar cotidianamente e assim conseguir me sentir confortável na dança do viver foram e continuam sendo meu norte de vida.
Medo da entrega ao corpo, à vida
O medo da entrega ao corpo e à vida é um medo inerente ao ser humano.
O medo da vida e da entrega tem como uma de suas origens o nascimento, quando vivemos a separação do corpo da mãe. O nascer provoca a sensação de desamparo devido à perda do útero, isto é, do espaço, dentro do possível, seguro e protegido. Saímos todos desse lugar de proteção básico para o desconhecido.
Sabemos, por meio de todos os estudos que tratam dessa questão, que a vida psíquica do bebê, para sobreviver a essa separação e desamparo, começa com uma experiência de fusão que leva à fantasia de que existe apenas um corpo e um psiquismo para duas pessoas e estas constituem uma unidade indivisível.
A fantasia do “corpo-único”, primordial em todo ser humano, tem certamente seu protótipo biológico na vida intrauterina, onde o “corpo-mãe” deve realmente prover as necessidades vitais dos dois seres.
Embora já seja um ser separado com suas potencialidades inatas, o bebê não tem consciência disto. Para ele, sua mãe e ele próprio constituem uma única pessoa, isto é, são uma única pessoa.
Voltando à questão do nascimento sabemos que a mãe, neste momento, constitui ainda o Ambiente total, uma “mãe-universo”.
A nostalgia que sentimos de um retorno a essa fusão ilusória, o desejo de nos tornarmos uma vez mais parte dessa “mãe-universo” onipotente do início da vida e infância, sem nenhuma responsabilidade e desejo, jaz profundamente no fundo de cada um de nós.
O prolongamento imaginário dessa experiência representa, não somente um papel essencial na vida do recém-nascido, como também vai reger seu funcionamento somatopsíquico.
Tanto o bebê quanto a criança pequena necessitam de uma relação amorosa, íntima e contínua com a mãe ou alguém que possa substitui-la. Esta é a base para o desenvolvimento da personalidade do ser.
Só através da mãe é que o bebê pode iniciar seu processo de desenvolvimento pessoal e real.
O teórico Donald Winnicott desenvolveu toda uma teoria sobre a relação mãe- bebê.
Trouxe para o universo do campo psicológico o conceito de holding que, além do suporte físico dado ao bebê, designa também tudo o que o meio ambiente fornece para o conceito de vida em comum. A essência do holding reside na relação mãe-bebê. É a sensibilidade de uma pessoa para com outro ser humano.
Podemos também entender o holding como a capacidade específica de uma pessoa ressoar as necessidades básicas de outra. O ressoar o outro é o conceito de empatia.
Podemos afirmar que a vida do ser humano inicia com e pelo holding.
Ao mesmo tempo em que o processo de desenvolvimento está ocorrendo, o bebê também vai desenvolvendo uma necessidade de separação.
Quando a relação mãe-bebê é “boa o suficiente” possibilita o desenvolvimento de uma diferenciação progressiva na estrutura psíquica do bebê entre seu próprio corpo e o corpo materno.
Para que isso ocorra, a “mãe suficientemente-boa” precisa para isto ser capaz de se colocar no lugar do bebê e saber se este precisa ser tomado nos braços, ser deixado só, ser mudado de posição ou lugar, etc.
Para que a mãe seja “suficientemente-boa”, é também preciso que o ambiente em que ela se encontra seja seguro para assim poder passar essa segurança ao bebê.
Diante dessas condições favoráveis, o bebê pode desenvolver a capacidade de acreditar, confiar e se entregar ao fluxo da vida. A função da mãe é transformar a angústia do bebê em acolhimento e aliviar seus medos e sofrimento.
Neste processo a mãe também reconhece a necessidade do bebê de renunciar à sua presença para poder se entregar ao sono. Para essa entrega acontecer, o bebê precisa sentir que existe alguém capaz de compreendê-lo.
Esta entrega ao sono pode ser vista como a primeira experiência de entrega vivida pelo ser humano.
O teórico Guy Tonella no texto “O Self Interativo” fala que “ o bebê precisa de alguém que o faça adormecer para que possa mais tarde conseguir adormecer sozinho”.
Falamos que a primeira questão na vida do bebê é a integração e que essa só poderá acontecer se o holding for adequado. Caso este não aconteça o bebê ficará exposto a experiências de descontinuidade e a consequência será uma impossibilidade de integrar tanto experiências quanto processos internos.
Temos, portanto, que pensar que esses seres ao nascerem foram tocados, acolhidos em um ambiente familiar com um padrão determinado e específico. Nesse momento estou me referindo aos padrões sociais e emocionais adequados, dentro de um padrão o mais harmônico possível.
Tudo fica marcado neste corpo que irá se desenvolver dentro de suas possibilidades e potencialidades com mais ou menos fluxo, energia, presença, comprometimento, entrega. Ao falar de possibilidades e potencialidades não posso me furtar de relembrar que estas também dependem do contexto em que o ser está inserido.
Nesse processo, todos nós construímos e desenvolvemos proteções/defesas que possibilitam, de um jeito ou de outro, a pertença a uma determinada e específica cultura e família.
O efeito desse processo “fala” e mostra as diferenças entre os seres, as possibilidades de proximidade e inserção no mundo. Com certeza uns poucos dentre muitos serão mais aptos e terão mais recursos para lidar com a vida e o mundo.
Após o nascimento começa, ao mesmo tempo, o processo de recolhimento para a grande maioria, processo que ocorre tanto por fatores externos como internos. Ocorre em função das questões do próprio desenvolvimento como também pelos traumas sofridos no decorrer deste desenvolvimento. Em decorrência destes fatores, o movimento da não entrega vai sendo desenvolvido como defesa e proteção.
Nesse momento lembro-me da paciente M (37 anos) que me procurou por não conseguir engravidar. A família do marido dizia só para ter fé em Deus. A questão é que como ela morava fora do país as sessões teriam que ser via Skype. Após um tempo fomos observando que ela sofria de terrores noturnos e que uma das razões para seu grande medo da vinculação eram os traumas sofridos durante seu desenvolvimento por causa basicamente da relação com sua mãe que veio a cometer suicídio quando M estava com 10 anos de idade. Após trabalharmos várias questões traumáticas e também fazendo, mesmo via Skype, exercícios de respiração, grounding, limites, ela verbalizou que o que possibilitou seu vínculo comigo foi o fato de as sessões serem virtuais, pois nunca tinha iniciado um processo de terapia pelo medo do vínculo. Hoje, após oito anos de processo, está com 2 filhos (inseminação artificial) e voltou a residir por um tempo no Brasil. Naquele momento vimos que era importante para ela dar uma pausa no processo, pois muito havia sido visto e trabalhado, e agora precisava de um tempo de degustação.
Alexander Lowen, – criador da A.B (Lowen,1997: 27-43) é o teórico que trará luz para o processo de desencouraçamento dos seres. Coloca a condição da entrega como a possibilidade da saída dos estados de paralisia, anestesia e contração nos quais muitos de nós nos encontramos. Em sua visão, esse ato da entrega não só implica abrir mão de um excesso de controle egóico como também nos coloca diante de três grandes medos presentes em cada um de nós, que são: o medo da morte, o medo da loucura, e o medo da sexualidade.
Segundo Lowen (Lowen,1986: 106-134), o “medo da insanidade” decorre da percepção subliminar de que um excesso de sentimento poderá inundar o ego e isso resultará em loucura, pois o ego estará dominado por esse excesso de sentimento; “o medo da morte” está relacionado a uma vivência muito primitiva em que a criança percebe que está diante da morte, ou da possibilidade da morte, e isso faz com que o organismo se encerre numa armadura como uma medida defensiva para não se sentir vulnerável a essa possibilidade novamente.
Ao tentarmos corresponder às exigências, ilusões e falsas promessas do mundo atual, nos distanciamos de nós mesmos e a vida passa a ser vivida de uma maneira frenética, dissociada, estressada. Lowen faz uma crítica a esse modo de ser e estar no mundo e diz: (Lowen,1984: 71-109) “Numa sociedade de massa é o sucesso que distingue o indivíduo da multidão”. Faz ainda uma análise importante sobre o que é considerada uma pessoa bem-sucedida na sociedade capitalista ocidental e como isso passou a ser o objetivo supremo da grande maioria das pessoas.
Essa forma de viver e fazer pela força de vontade vem sendo cada vez mais extremamente incentivada por toda a mídia, pelo interesse capitalista, uma vez que esta estratégia é necessária para a manutenção do próprio sistema.
Sabemos que esse esforço, além de ser uma forma muito cansativa de viver, causa impedimentos no campo do sentir e no livre fluxo dos movimentos. Esse estado crônico pode também ocasionar um colapso, um esgotamento, e hoje se apresenta no sintoma do “burn out”. Esse fazer crônico e compulsivo, além de estar a serviço da ilusão do poder, da felicidade eterna e da juventude, mostra os modos de estar no mundo totalmente incentivados pelo sistema sócio-político-econômico contemporâneo.
Esse modo de viver também provoca um investimento excessivo na manutenção da imagem, visto que “o que se aparenta” passa a ter mais valor no mundo contemporâneo. Isso é a própria sociedade da aparência. O viver na aparência e em função da imagem afasta qualquer possibilidade de entrega a si e à vida.
Lowen também considera que, numa cultura narcisista como a nossa, falar de “entrega” ou “rendição” equivale a ser derrotado, mas, na realidade, é apenas a derrota do ego narcisista (Lowen,1997: 27)
Esse modelo com que as sociedades ocidentais se organizaram e se desenvolveram, aprisiona a todos de um jeito ou de outro.
Para sair das armadilhas do sistema, dos modos não potentes de funcionamento, da maneira de pensar o mundo totalmente de acordo com a ideologia dominante e propagada, mudanças são e serão sempre necessárias.
Temos que ter coragem para enfrentar e sair das zonas de conforto, adquirir, resgatar e sustentar a potência, e coragem para os enfrentamentos necessários que o viver exige.
Considerações Finais:
No meu processo de me entregar à escrita, vivenciei esse medo presente. Respirava, dava uma pausa, acolhia meu medo e continuava com a certeza que só havendo entrega conseguiria enfrentar meu medo e o processo.
Todos em seus processos de desenvolvimento necessitam de cuidados, amparo e holding. Estes devem ser pouco a pouco internalizados para que assim possamos vir a sustentar nossa existência e angústias.
A capacidade de autossustentação, e isso significa ter grounding, eixo, presença foco, atenção, responsabilidade, comprometimento, é o que nos possibilita ter a coragem de nos entregarmos a nós mesmos e à vida.
A entrega, ao contrário de ser perigosa, afirma a vida, e é potente. Essa potência nos encoraja a continuar no processo diário de entrega ao corpo e à vida.
Somente pela entrega seremos capazes de experimentar o novo, o diferente, e poderemos olhar o mundo de maneiras diversas, de outras perspectivas. Assim poderemos estar no mundo com postura, olhar, ação e entendimento inovadores, criativos e sem julgamento.
Acredito e pauto meu trabalho na aceitação da premissa de que nosso trabalho enquanto psicoterapeutas é criar, através da aliança terapêutica, a possibilidade, para que quem nos procura, de encontrar sua potência, seu espaço no mundo, e assim dançar e viver o que for possível viver.
“ Se quisermos um outro mundo, mais do que nos organizar pelo ”NÃO” [é melhor sonhar e nos conectar por um grande “SIM”! Emicida – Rapper, cantor, letrista e compositor brasileiro.
Sim à vida!
Sim à entrega!
Sim ao corpo!
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